(…) Que Alcântara é um todo
Não é só uma parte
Ou o quanto restou do
Que se fez arte (…)
Os versos do poeta José Chagas, em seu épico “Alcântara a Negociação do Azul ou a Castração dos Anjos”, fazem ainda mais sentido neste Tempo Divino em que a Cidade-Monumento se enfeita para cultivar uma tradição que tem atravessado séculos e que, apesar das mudanças trazidas pela modernidade, resiste e sobrevive como uma das maiores festas populares do Maranhão.
Por entre ruas e becos, o festejo vai revelando a arquitetura histórica de Alcântara – Foto: Marilda Mascarenhas
São doze dias de uma maratona intensiva de cortejos, visitas e rituais, que começa com a subida do mastro da Imperatriz( ou do Imperador, conforme o democrático revezamento que acontece de ano a ano) e só termina com a leitura do Pelouro com o aguardado nome dos festeiros do ano seguinte. A festa obedece ao calendário religioso e este ano acontece entre os dias 8 e 20 de maio, homenageando em seu cartaz “Mãos que compartilham os saberes Divinos”, mestres e mestras que são responsáveis por manter a tradição, seja no preparo de bolos, doces e licores, seja no capricho em que são confeccionados os altares e a indumentárias capazes de surpreender qualquer Corte Imperial real.
Anica, Margarida e Marlene, das antigas, a única viva – Foto: Christian Knepper
A Festa do Divino continua mobilizando praticamente a cidade inteira, mas ninguém esconde que a fé a devoção já não são as mesmas de antigamente e há um perigo que ameaça à tradição e que vem sendo alertado há décadas sem sucesso: a falta de Caixeiras, personagem central da Festa. Como dizia em alto e bom som a famosa Anica, que morreu o ano passado aos 91 anos, “sem caixeira, não tem Festa do Divino, meu preto…porque bonito é o batuque, bonito é o batuque”…Anica era a penúltima de uma geração de grandes Caixeiras que ficou na memória da Cidade de Alcântara. Dessa geração, resta sua irmã Marlene, Caixeira-Mor, e sua irmã Maria, que há anos já reside em São Luís e só vem no tempo da Festa. A maioria das Caixeiras vem do interior ou de outros municípios, especialmente da Baixada Maranhense, e até hoje não recebem o devido valor do papel que desempenham na Festa e na vida comunitária.
Anica também morreu indignada com as mudanças que a Festa vinha apresentando, sobretudo em relação ao esperado apoio oficial sempre motivo de muita frustração e expectativas. “Antigamente a gente fazia da pouca força, agora a Festa só acontece se tiver ajuda do Governo”, bradava a velha Caixeira. Do outro lado, outro grande mestre da Festa, seu Moacir, que também já partiu para o outro plano assim como os inesquecíveis Ricardo Leitão e seu Raul, explicava que a Festa ao longo dos anos foi ganhando uma dimensão internacional e os festeiros sozinhos não dão conta de alimentar, com bolos, doces e licores, uma multidão de visitantes que chegam de várias parte do Maranhão, do Brasil e do mundo. Uma das características da festa é que tudo é distribuído de graça, mesas sempre fartas onde não pode faltar o tradicional doce de espécie e o licor de jenipapo.
Casarões seculares que remontam a história da Cidade-Monumento – Foto: Marilda Mascarenhas
Este ano, Alcântara vive uma situação singular. Às vésperas de iniciar um novo ciclo de sua história, com a chegada de dois grandes empreendimentos que vão mudar os rumos do desenvolvimento regional (a expansão da Base Espacial e o Porto da Ilha do Cajual), a cidade está praticamente à deriva, com a interdição do atracadouro que há anos compartilhava com o Centro de Lançamentos de Alcântara(CLA) e que naufragou deixando a população e turistas em clima de total desconforto, tendo que enfrentar a lama dos manguezais nas operações de embarque e desembarque nos horários de maré baixa.
Cidade tombada como patrimônio nacional se prepara para receber visitantes nos festejos do Divino Espírito Santo – Foto: Marilda Mascarenhas
Foi um jogo de empurra e de falta de articulação política que precisou da intervenção do Ministério Público para que uma solução definitiva seja encontrada, enquanto se aguarda pela reforma do Cais da Aeronáutica e a construção de um outro Cais para uso da população e dos turistas, que já havia sido anunciado desde antes da pandemia.
Multidão acompanhou a subida do mastro do Divino Espírito Santo, na tarde de ontem (08), em Alcântara – Foto: Marilda Mascarenhas
Enquanto isso, o jeito é usar a alternativa do ferry boat( que dura pelo menos 3 horas do Porto da Espera, em São Luis à sede de Alcântara) ou esperar a maré alta para atracar na ruína do antigo porto, que não foi concluído, por ter sido construído à revelia da Lei, como aliás é comum acontecer em Alcântara. Exemplo claro é a própria contratação de bandas e radiolas que estremecem os casarões e ruínas seculares da Praça da Matriz de Alcântara, tombada pelo Patrimônio Nacional desde 1948, e que não tem nada de Divino, atraindo para a Festa gente interessada apenas em diversão e que estaria satisfeita com qualquer outro tipo de entretenimento em espaços permitidos por lei.
Mordoma Regia da festa Erika Pinheiro no altar da Festa do Divino – Foto: Marilda Mascarenhas
Mas como bem registrou o poeta, o som pode ser liberadamente estridente porque “(…) o silêncio de Alcântara é tão alto que ensurdece todo o Maranhão”. E Viva a Festa do Divino de Alcântara, onde todo o poder é simbolicamente dado às crianças, representadas lindamente na Corte Imperial. Quem sabe, com a pureza delas, viveríamos de forma muito mais divertida e legal.
Texto: marilda Mascarenhas
Ediçao: Gutemberg Bogéa